A palavra “quântica/o” atualmente possui várias funções, desde
estratégia de marketing para aumentar a venda de produtos assim
rotulados, passando por cartada final em acaloradas discussões sobre
qualquer coisa “estranha”, sinônimo de “fenômeno da consciência” e
finalmente representar um corpo de conhecimento científico sobre o
funcionamento dos átomos e das “coisas” que os compõem.
É
interessante notar o quão diferente são as visões do público em geral e
das pessoas que trabalham diariamente com a realidade quântica. Nesse
texto farei
alguns comentários sobre a visão dos físicos, do público e vou tentar
encaminhar
um acordo entre ambas as partes. Será possível?
Cientistas, o que é
essa tal Física Quântica?
Para
os cientistas, o domínio da Física Quântica trata das coisas muito pequenas que
empilhadas compõem as coisas grandes - as coisas que experienciamos através dos
nossos sentidos, que por sua vez se manifestam em nossas mentes. Acontece que
as coisas pequenas, seguem outras leis e se comportam de forma completamente diferente
dos objetos que experimentamos em nosso cotidiano. Chamamos de teoria quântica
o conjunto de leis matemáticas que descrevem o (mal) comportamento das pequenas
coisas materiais.
O
próximo ponto a ser esclarecido é que há uma parte da Física Quântica que os
cientistas entendem e outra que não. A parte que entendemos compreende os fatos
quânticos - os dados empíricos, as coisas que a natureza nos revela - e a
teoria quântica - o formalismo matemático que descreve os fatos quânticos. Medindo
as respostas que a natureza apresenta às nossas perguntas e manipulando os
símbolos matemáticos através do nosso aparato racional, é possível criar
fantásticas tecnologias como o laser, o transistor (que está nos processadores
dos microcomputadores) e aparelhos de física médica.
A
princípio, poderíamos ficar por aqui com o que entendemos e com o desenvolvimento
das tecnologias materiais. Já está bom, não? Acontece que somos impossivelmente
curiosos e invariavelmente nos perguntaremos: o que tudo isso significa, o que
os fatos quânticos nos ensinam sobre a realidade que nos abraça? O que tudo
isso implica para mim que faço parte disso tudo? Essa é a metafísica, a parte que ainda não entendemos.
Ao
tentarmos traduzir a matemática e os fatos quânticos para a linguagem humana,
criamos uma interpretação. O ponto é que atualmente existem diferentes
interpretações que são incompatíveis entre si e ainda sim todas são compatíveis
com os fatos quânticos! Em outras palavras, não há consenso entre os físicos
sobre o que é a realidade quântica. Ainda não conseguimos construir uma imagem
mental definitiva sobre o que está realmente acontecendo “lá embaixo”.
Uma
novidade que a teoria quântica traz em relação às teorias clássicas é a
existência de um processo de observação.
Tentando traduzir a matemática, funciona mais ou menos assim: enquanto livres,
descrevemos as entidades quânticas como (segure-se para não cair da cadeira)
fazendo tudo que lhes é possível ao mesmo tempo. Sim, estando em todas as
posições, dizendo sim E não ao mesmo tempo. Mas isso é muito estranho e nos
esforçamos para tentar assistir esta bizarrice de camarote. Porém, quando
interferimos com o sistema quântico, quando fazemos uma observação, algo
curioso acontece. As entidades quânticas quando averiguadas sobre o que estão
fazendo em um certo momento passam a se comportar de forma clássica. Estão em
apenas um lugar, fazendo apenas uma coisa. Ao serem observadas, o comportamento
das entidades quânticas é alterado de maneira abrupta! Mas o que exatamente
caracteriza uma observação? O que, ou quem é o responsável?
Uma
vertente de interpretação que foi discutida no início do século XX é a de que a
física quântica representa o fantástico momento histórico em que aprendemos que
não é possível descrever o universo de fora sem fazer referência à experiência
interna. Ou seja, de alguma forma a consciência
deve entrar nas equações da física para uma descrição completa da realidade. O
observador somos nós! Essa visão que foi defendida por físicos como John Von
Neumann e Eugene Wigner (e mais recentemente por Bernard d'Espagnat , Evan
Harris Walker , Henry Stapp), ficou conhecida como interpretação subjetivista.
Com
o desenrolar da segunda guerra mundial, os governos perceberam a importância
das tecnologias desenvolvidas pelos físicos: radar, bomba atômica, etc. Para
formar o maior número no menor tempo possível, todas as questões metafísicas
foram excluídas do processo de formação dos físicos (recomendo o livro “How the hippies saved physics” do
historiador da ciência do MIT, David Kaiser). Como resultado do processo de
pragmatização do conhecimento natural, as interpretações subjetivistas saíram
de moda, dando lugar a outras visões de cunho estritamente material. Atualmente
prefere-se acreditar na existência de infinitas realidades paralelas do que
introduzir na física o desconfortável ingrediente subjetivo.
Pessoal, o que é
essa tal Física Quântica?
Talvez
você já presenciou essa cena. Estamos em uma mesa de bar, papo animado rolando
e lá pelas tantas alguém começa a relatar algo estranho que jura que aconteceu
certa vez. O clima vai esquentando e quando a coisa fica complicada e ninguém
entende mais nada, quando os alicerces da realidade que nos sustentam estão
prestes a colapsar, alguém tira da manga a cartada mágica que encerra a discussão
e curiosamente tranquiliza os corações aflitos: “tudo é muito quântico”.
De
acordo com a visão popular, física quântica serve entre outras coisas para:
provar cientificamente a existência da alma, comprovar a eficácia de terapias
alternativas (como por exemplo acupuntura, homeopatia, constelações familiares,
reiki, etc) e consagrar o poder do pensamento positivo. É nítido que a visão
popular do termo “quântico” está mais associada a questão da consciência do que
a da matéria. Entendo que quando se fala de “saúde quântica”, na verdade está
se questionando o papel da consciência na construção da realidade. Porém, a relação
entre quântico e consciência não é óbvia como usualmente propagado, muito pelo
contrário é tema de alta controvérsia.
Muitos
abusos tem sido cometidos através da associação dos fatos quânticos à crenças individuais
ou coletivas de cunho religioso (eventualmente de cunho comercial). Confunde-se
o “é possível” com o “cientificamente comprovado”. Embora existam várias
interpretações diferentes da física quântica, é comum nesse contexto apegar-se a
uma particular e simplesmente ignorar as outras. Acredito que para aventurar-se
no território da filosofia quântica, é necessário lidar com as incertezas,
avaliar as possibilidades e ter a dúvida como a sua melhor aliada. Algo como “não
entendemos, mas pode ser assim ou assado. Posso até me identificar mais com a
opção x, mas mesmo assim sempre sobra uma interrogação no final da frase. Que
mistério fascinante!”.
Os
cientistas em geral assistem as reinvindicações populares de cabelos em pé. Na
sua visão, a teoria quântica que foi construída com duro trabalho, suor e
lágrimas, serve para dialogar com as coisas materiais muito pequenas. Por sua
vez, embora ainda não entendam o porquê, quando muitas coisas pequenas são
empilhadas, a física deixa de ser quântica e torna-se clássica.
Os
cientistas questionam-se: “como podem extrapolar a teoria quântica para o
domínio do muito grande e portador de mente (nós mesmos)? Não faz sentido,
estão tentando usar um martelo para serrar”. Em geral, entende-se que há um
problema básico de compreensão e as portas do templo são fechadas para os que
não estão preparados para manipular as ferramentas intelectuais – “na verdade é
mais complicado, mas deixem que estamos cuidando disso”.
O
público, por sua vez, visualiza o templo científico e pensa “são muito
inteligentes, mas não estão sentindo a realidade como nós. Estão fechados em
suas mentes. Nós precisamos de explicações para o que estamos experimentando.
Existe algo a mais”.
Da
forma como as coisas estão atualmente, esse texto acabaria aqui com a triste
conclusão do distanciamento entre a visão científica e do público em geral.
Porém, venho propor uma alternativa.
Uma possível
conciliação?
Para
fazer as pazes entre ambos os lados, é necessário buscar uma explicação que
conecte o micro e o macro, o objetivo e o subjetivo (ou de forma oposta, buscar
a explicação do porquê isso não é possível). Por mais difícil que pareça, por
mais longe que podemos estar desse objetivo, visualizamos algumas
possibilidades. Temos algumas sugestões sobre onde essa trilha pode começar e todas,
invariavelmente pedem que encaremos de frente a questão da consciência.
Para
os físicos, a introdução da consciência nas equações é desconfortável. Embora
seja a nossa experiência mais direta, é o fenômeno mais misterioso de todos.
Mal sabemos por onde começar já que não temos teorias satisfatórias que
expliquem o que é e como funciona. Não se confunda, consciência está
correlacionada com processos cerebrais, mas é bem possível que não se reduza
aos mesmos. As sensações de cor, sabor e unidade do Eu estão longe de ser
explicadas por impulsos elétricos e processos neuroquímicos. Como se forma esse
rico universo de experiências internas partindo de propriedades materiais como
posição, velocidade e carga elétrica?
Atualmente,
vejo pelo menos duas possibilidades de conciliação, que vou chamar de cérebro quântico e pampsiquismo. Ambas sugerem que o que chamamos de quântico não se
restringe ao muito pequeno. Na verdade constitui a nossa experiência mais
direta. Conforme as percepções populares, consciência e mente estariam
relacionadas com algo de natureza quântica. Nesses casos, poderíamos sim
aprender algo sobre nós ao explorar o micro mundo.
De
acordo com a visão do cérebro quântico, a consciência humana resultaria de
processos quânticos operando em micro estruturas atômicas cerebrais. Atualmente
há uma teoria do anestesista Stuart Hameroff e do físico Roger Penrose que
defende essa hipótese. Essa visão tem sido fortalecida pelo avanço da
surpreendente área da biologia quântica, que cada vez mais revela processos
quânticos operando em nível biológico (os cientistas inicialmente imaginavam
que isso seria impossível, dados os níveis usuais de temperatura e pressão dos
organismos vivos. Os processos biológicos deveriam ser explicados apenas pela
física clássica).
Para
a outra possibilidade, segure-se novamente para não cair da cadeira. O que ela
propõe é que (respire fundo e vamos lá) a mente é uma propriedade tão
fundamental quanto a matéria. Na visão pampsiquista, tudo que existe tem um
lado de fora e de dentro, não é possível separar as duas coisas. Mente e
matéria são fundamentais e irredutíveis. O que essa visão propõe é que as
células que lhe compõem possuem algum tipo de experiência interna. Não que
sejam inteligentes, que tenham um Eu, ou que compartilhem emoções nos moldes do
que conhecemos. Talvez a experiência subjetiva de ser uma célula seja uma algo
tão alienígena que simplesmente não podemos imaginar. Da mesma forma, os átomos
que compõem as células também seriam portadores de experiências internas. A
consciência humana seria o produto combinado das diversas proto-mentes que nos
compõem. Essa ideia tem sido defendida por filósofos como David Chalmers,
Thomas Nagel, o físico Nick Herbert, entre outros pesquisadores.
Aprofundando
a visão pampsiquista, a “bizarrice quântica” poderia ser fruto de uma interpretação
errônea – estaríamos associando propriedades ondulatórias com matéria, sendo
que na verdade o ondulatório refere-se à mente. De acordo com essa visão, a
aleatoriedade quântica seria um reflexo
de nossa ignorância sobre o espaço interno das proto-mentes descritas e a
questão da observação passaria a ser vista como a cristalização ou a
implementação material de possibilidades mentais. Além disso, a visão
pampsiquista propõe um retorno ao programa pré-guerra da interpretação
subjetivista, considerando que a consciência possui um papel fundamental na
física, mas propõe uma nova rota ao sugerir que a consciência não constitui uma
exclusividade humana.
A
possibilidade pampsiquista flui contra o consenso científico atual de que
apenas a matéria é fundamental - visão conhecida como monismo materialista, em
que tudo que existe deve se reduzir em nível fundamental a explicações físicas
e químicas. Tudo, incluindo nossas experiências internas. Consciência seria um
processo emergente da complexidade cerebral. Acontece que o materialismo não é
um fato empírico. Não é a natureza que nos revela isso. É um ponto de partida,
uma premissa metafísica.
Retornando
a questão das diferentes visões entre público “leigo” e cientistas, minha
opinião é que o fato de o público em geral não estar apegado a crenças
metafísicas materialistas e por não ter a necessidade de se limitar a modelos
teóricos, está mais aberto para experimentar de uma forma mais ampla, intensa e
livre a realidade. Assim, embora grande parte do que é relatado pode
simplesmente estar relacionado a processos de distorção cognitiva e auto engano
com a finalidade da sustentação de crenças, uma parcela significativa dos
relatos pode apontar para verdades
profundas sobre a natureza da consciência.
É
possível que o publico “leigo” não esteja simplesmente equivocado, que por
exemplo, suas experiências com terapias alternativas e resultados positivos sejam
legítimos. É possível que os padrões encontrados nas experiências subjetivas
relatadas por místicos, xamãs e exploradores da consciência de todos os tempos (tema da filosofia
perene) possam constituir dados confiáveis sobre a natureza da realidade. É
possível que fenômenos psi (telepatia, clarividência, precognição e
psicocinese), relatados por grande parte das culturas ditas “primitivas” sejam
indícios favoráveis a outras relações fundamentais entre mente e matéria. É
possível que a consciência tenha um papel maior na construção da realidade por
ser algo mais fundamental do que normalmente imaginamos.
Tudo
isso é possível, mas controverso. Resta um grande trabalho a ser feito. Entendo
a Ciência como um empreendimento que não deve ser limitado por crenças pessoais
ou convenções sociais e até o momento presente, desconheço argumentos razoáveis
que excluam essas questões do domínio de exploração científica. Caberá às novas
gerações de cientistas enfrentar o atual preconceito acadêmico em relação a
esses temas e implementar um novo modo multidisciplinar de fazer ciência que
busque integrar o conhecimento obtido do mundo de fora com o conhecimento
obtido por vias subjetivas. Nesse processo de uma ciência integral, será
importante a escuta e uma troca mais saudável e respeitosa entre cientistas e o
público. É possível que ambas as partes estejam vislumbrando a mesma realidade,
porém de ângulos diferentes.
http://gabrielguerrer.com/post/112700665377/essatalfq