Estudo feito por um renomado psicólogo da Universidade de Cornell,
nos Estados Unidos, reacende o debate sobre a capacidade humana de
antever o futuro
Um dos melhores pesquisadores de sua geração, o psicólogo Daryl J.
Bem transgrediu as regras da academia ao estudar sobre premonição
Num diálogo do livro “Alice no Outro Lado do Espelho”, de Lewis Carroll,
a continuação do clássico “Alice no País das Maravilhas”, a Rainha
Branca diz à Alice que tem memória nos dois sentidos, para o passado e
para o futuro. Tese que a menina considera um absurdo: “Ninguém pode
acreditar em coisas impossíveis”, rebate. A soberana, no entanto,
explica que é somente uma questão de prática e a aconselha a imaginar ao
menos seis coisas impossíveis antes mesmo do café da manhã. Menos
cético que a carismática personagem, o renomado professor americano
Daryl J. Bem, um dos mais proeminentes pesquisadores de psicologia de
sua geração, segundo o “The New York Times”, ousou deixar de lado a
regra silenciosa que paira sobre o ambiente acadêmico, segundo a qual
tudo o que foge de uma explicação racional deve ser solenemente
ignorado. E desobedeceu a esse hermetismo em grande estilo, ao
investigar a capacidade humana de antever o futuro, popularmente
conhecida como premonição. Tal qual a Rainha Branca, ele crê na memória
com a seta indicando para a frente.
O procurador aposentado Valter Borges montou um instituto de pesquisa após a premonição da morte do filho
O mais recente estudo de Bem, publicado no “Journal of Personality and
Social Psychology”, da Associação Americana de Psicologia, teve um
efeito explosivo sobre a comunidade internacional. Menos por seu
conteúdo, também bastante surpreendente, e mais pelas credenciais de seu
autor, um notório professor de psicologia da Universidade de Cornell,
Nova York, uma das mais prestigiosas dos Estados Unidos. Ele tem mais de
70 artigos publicados e é formado em física pelo Massachusetts
Institute of Technology (MIT). Até então, os trabalhos sobre as chamadas
percepções extrassensoriais, também conhecidas como ESP (sigla em
inglês para extrasensory perception) eram considerados menores, pouco
científicos. O de Bem e sua equipe quebraram essa escrita. Em sua
pesquisa, Daryl J. Bem relata nove experimentos feitos com mais de mil
universitários. Os testes, reproduções de estudos clássicos sobre
percepção extrassensorial, eram extremamente simples (leia quadro na
pág. 50). Neles, os participantes tinham que antever que tipo de imagem
iria aparecer no computador ou em qual das duas janelas mostradas na
tela iria surgir uma foto. Quando o conteúdo em questão tinha um teor
erótico, os estudantes acertavam mais. “Isso entre pessoas comuns,
escolhidas de forma aleatória. Meu palpite é de que se eu usar gente
mais talentosa, melhor nisso, elas poderão prever qualquer foto”, disse o
pesquisador, sem explicar o que quer dizer, ao certo, “gente mais
talentosa”.
A funcionária pública Erilene Pereira anteviu
dois acidentes de carro, com o filho e o cunhado
Segundo Bem, em oito dos nove experimentos houve um índice de acerto
acima do que é considerado coincidência ou obra do acaso. Também foi
feito um teste no qual o aluno escolhia se queria arriscar mais nas
respostas ou se desistia de tentar. “Os que aceitaram correr mais riscos
foram os que tiveram mais acertos”, conta Bem. O psicólogo é cuidadoso
ao tirar suas conclusões, mas acredita que todo mundo pode ter
capacidades precognitivas, embora uns as tenham mais desenvolvidas do
que outros. Também explica que as percepções extrassensoriais são fruto
do processo evolutivo no qual antever situações de perigo ou propícias à
reprodução se tornaram vantajosas ferramentas de sobrevivência. Isso
ajudaria a comprovar a existência de premonições.
Outra pesquisa, feita com universitários brasileiros, mostra que
pensamentos premonitórios rondam o inconsciente bem mais do que se
imagina. Segundo o trabalho realizado em 2008 na Universidade de São
Paulo, 71,5% relataram premonição através de sonhos (leia quadro na pág.
55). No Instituto do Sono, de São Paulo, 30% dos pacientes contam ter
sonhado com algo que depois se concretizou. Apesar de ser comum e fazer
parte da vida de muitos brasileiros, essa capacidade de antever o futuro
ainda é encarada como um grande mistério. Poucos cientistas se dispõem a
estudar o tema e, mais do que isso, se recusam a comentá-lo. Lá fora,
não é diferente. O artigo produzido em Cornell foi recepcionado com
duras críticas. Ray Hyman, professor de psicologia da Universidade de
Oregon (EUA), disse ao jornal “The New York Times” que o trabalho é
loucura pura. “É um embaraço para a categoria”, atacou. Uma das censuras
recebidas foi pelo fato de o professor Bem ter avisado os estudantes de
que se tratava de um teste de premonição, o que pode ter influenciado
as respostas. O físico Rory Coker, da Universidade do Texas (EUA), um
crítico contumaz do que chama “pseudociência”, também fez ressalvas ao
colega pesquisador. “A ciência não ignora os fenômenos paranormais, o
problema é que tudo o que se vê são estudos feitos para provar aquilo no
que se acredita. Dificilmente há resultados significativos e poucos
trabalhos são reproduzíveis”, disse à ISTOÉ.
Daryl Bem não é o único acadêmico a colocar a mão nesse vespeiro ao
longo da história. Em 1934, o professor Joseph Banks Rhine lançou a
primeira edição do livro “Percepção Extrassensorial” a partir de vários
testes realizados na Universidade de Duke (EUA). Foi ele quem cunhou o
termo “parapsicologia” como o nome da ciência que estuda tais fenômenos.
Mais recentemente, em 2001, outro professor de psicologia e neurologia
da Universidade do Arizona (EUA), Gary Schwartz, testou em laboratório
cinco médiuns, entre eles o mais famoso da tevê americana, John Edwards.
No experimento, que foi exibido no Brasil pelo canal pago History
Channel, Edwards ficava separado de pessoas que queriam saber sobre seus
entes falecidos. Eles não se viam, apenas se ouviam e, como no
programa, Edwards apenas confirmava as informações. O índice de acertos,
segundo o pesquisador, foi de 83%. Schwartz também já esteve na mira do
implacável professor Hyman, de Oregon, que o acusou de forjar
resultados. “Muitas vezes na história da ciência nós estávamos errados.
Quando achamos que a terra era plana, quando consideramos que o sol
girava em torno da terra e tantas outras vezes. Prefiro estar sempre
aberto a qualquer possibilidade”, defende-se o professor do Arizona.
Para confirmar as teses dos estudiosos no tema, dezenas de relatos de
premonições vêm a público diariamente, manifestados por pessoas comuns –
que trabalham, estudam, têm filhos, professam uma religião ou não. Elas
costumam ser atropeladas em seu inconsciente por um acontecimento, uma
certeza, quase um clarão, que se impõe sobre sua lucidez e se
materializa em realidade horas, dias, meses depois, deixando-as,
normalmente, assustadas. Roteiro cumprido pela arquiteta Silvia Arruda,
de São Paulo. Em fevereiro de 1986, ela sonhou com uma cena de
quebradeira no Brasil. Gente falindo, perdendo dinheiro, corrida aos
bancos e supermercados. No dia seguinte, o então ministro da Fazenda,
Dílson Funaro, anunciou o Plano Cruzado, que congelou o valor de
salários, bens e serviços e provocou uma das maiores crises do governo
de José Sarney (1985-1990). Vinte anos depois, um novo sonho
premonitório, menos, digamos assim, coletivo. A arquiteta viu o então
namorado com uma dançarina ruiva de cabelos cacheados. Contou para ele
como quem relata uma curiosidade e foi ridicularizada. Pouco tempo
depois descobriu que ele estava saindo com uma mulher tal e qual a do
sonho. Detalhe: Silvia não é mística e nem sequer acredita em
premonição. Ou, ao menos, não acreditava. “Não acho que seja algo
sobrenatural, mas sim uma capacidade da mente em captar pensamentos e
sensações não ditos”, afirma.
A gerente de marketing Carolina Oliveira enxergou a separação de um
casal desconhecido, que aconteceu três meses depois
Colocar a mediunidade no mesmo pacote das experiências
extrassensoriais é assunto delicado. “A parapsicologia não lida com
questões transcendentais, como a comunicação entre vivos e mortos, mas
sim com a aptidão humana de manifestar poderes incomuns nas relações
consigo mesmo, com os outros e com o mundo material”, define o
procurador de Justiça aposentado Valter da Rosa Borges, de Pernambuco.
Nos anos 70, ele criou o Instituto Pernambucano de Pesquisas
Psicobiofísicas (IPPP) para tentar entender esses poderes incomuns,
motivado por uma premonição que tivera anos antes. Em 1968, ele perdeu o
filho Ulisses, de apenas 4 anos, vítima de um edema pulmonar agudo. “No
dia em que ele faleceu, ao sair do apartamento onde eu morava, passei
por uma alucinação auditiva. Uma voz me disse, por duas vezes, que meu
filho ia morrer naquela tarde”, recorda.
“Não é um fenômeno religioso, não é loucura, paranoia, coincidência
nem algo sobrenatural”, argumenta a parapsicóloga Márcia Cobêro,
professora do Centro Latino-Americano de Parapsicologia (Clap). “É uma
faculdade natural que todos têm, mas poucos se dão conta.” Segundo
Márcia, a primeira reação das pessoas que têm premonições é achar que
possuem um dom. O segundo passo é temer esse dom. Quando começou a ter
premonições, o corretor de imóveis de Santo André (SP) Robson Leiva
Lazarini ficou assustado e procurou ajuda na religião – primeiro
católica, depois batista. Também criou o blog Sonhos Premonitórios
(www.premonitoriosonho.blogspot.com), no ano passado. “As pessoas me
mandam e-mails para tirar dúvidas. Não sou especialista, mas tento
ajudar contando minha experiência.” Uma das que mais o impressionaram
foi com um avião que tentava levantar voo no aeroporto de Congonhas, em
São Paulo, não conseguia, virava para a esquerda e batia num prédio
baixo. No dia seguinte, foi buscar um cliente no aeroporto e ficou com
muito medo que acontecesse algo com o jatinho dele. Quando o cliente
aterrissou, respirou aliviado. Minutos depois, o avião da TAM, voo 3054,
colidiu com o prédio da própria empresa após tentar arremeter num dia
chuvoso. Lazarini ficou arrasado. “Mas o que eu posso fazer com esses
sonhos? Ligar para a Anac e avisar? Não sei o que fazer com eles, então
resolvi pelo menos registrar os mais recentes no blog.”
O corretor Robson Lazarini conta suas premonições, como a de um acidente de avião, em um blog
“Não existe, até hoje, um estudo que comprove como isso acontece
biologicamente. É metafísico e não sabemos como se dá. Mas é inegável
que é importante como um processo de autoconhecimento”, destaca o
neurologista Luciano Ribeiro, do Instituto do Sono, de São Paulo. Foi
essa preocupação que levou a psicóloga Fátima Regina Machado a fazer sua
tese de doutorado “Experiências Anômalas na Vida Cotidiana”, defendida
na Universidade de São Paulo (USP) em 2010. Segundo ela, o objetivo era
justamente chamar a atenção da comunidade acadêmica e dos profissionais
da saúde para a importância das percepções extrassensoriais.
“Compreendê-las é auxiliar o ser humano a lidar com elas”, destaca.
Afinal, argumenta a psicóloga, mesmo sendo um tema marginalizado pela
academia, são eventos que “insistem em acontecer” desde que o mundo é
mundo.
Na vida da funcionária pública alagoana Maria Erilene Pereira,
premonições e fortes intuições insistem em acontecer há algum tempo.
Como quando, relaxando em uma rede, ela teve um insight com o filho mais
velho, que havia saído com o carro à noite pela primeira vez. Erilene
teve uma visão de um sinal próximo de sua casa. Sentiu um aperto no
peito e ficou com receio de que acontecesse algo quando o filho passasse
por ali. Ligou para ele e pediu que voltasse para casa. O jovem tentou
acalmá-la, dizendo que estava tudo bem. Horas depois, ligou, aflito:
havia batido o carro naquele local. “Tivemos sorte, só o veículo sofreu
danos sérios. Ele ficou bem”, relembra. Muito pior foi o sonho no qual
um de seus cunhados recolhia pedaços de um corpo após um acidente de
carro. Dois meses depois ela perdeu um outro cunhado numa batida. E
aquele do sonho, que recolhia os pedaços, foi o primeiro a chegar ao
local do acidente. Os eventos ajudaram Erilene a cuidar de sua
espiritualidade e se sintonizar mais com sua intuição. “Isso me ajuda a
me conhecer melhor.”
Rory Coker, o físico americano que se dedica a denunciar os
malefícios da pseudociência, acredita que tudo não passa de
probabilidades. “Se toda vez que um parente meu sofresse algo eu
sentisse, aí sim seria um fenômeno a ser examinado. Mas isso acontece
muito de vez em quando e, portanto, fica dentro das estatísticas”, diz.
No entanto, ele admira a coragem de pesquisadores como Daryl Bem. “É
saudável que existam cientistas rebeldes que estão sempre imaginando
como trilhar novos caminhos, por mais absurdos que eles soem aos nossos
ouvidos.” Não à toa, Bem termina seu trabalho citando o diálogo da
Rainha Branca e de Alice que abrem esta reportagem. O professor diz que
34% dos psicólogos que estão nas universidades concordam com Alice. E
finaliza: “Quem sabe esse estudo não incentive os outros 66% dos meus
colegas a investigar ao menos uma coisa anormal por dia.” Afinal,
premonições são como as bruxas. Você pode até não acreditar nelas, mas
que elas existem, ah, existem.
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