O magnetismo animal no Brasil

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Muito do que sabemos sobre os primórdios do magnetismo animal ou mesmerismo no Brasil devemos a Francisco Fajardo (1896). A primeira referência brasileira sobre o magnetismo animal é o livro do médico pernambucano João Lopes Cardoso Machado onde ele fala pela primeira vez do magnetismo animal sob o nome de "catalepsia espontânea" (Dicionário Médico-Prático – Para Uso dos que Tratam da Saúde pública, Onde Não Há Professores de Medicina, 1823).

Entretanto, foi uma tese de doutorado apresentada formalmente à Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (fundada em 1829 e mais tarde renomeada como Academia Imperial de Medicina, e depois Academia Brasileira de Medicina), em 1832, pelo médico Leopoldo Gamard, sobre o magnetismo animal e seu uso em medicina, a primeira tentativa de formalizar o uso desta controvertida psicoterapia. No entanto, o Dr. Augusto Renato Cuissart, eminente membro da Academia, fez rejeitar mediante erudito julgamento, a tese de Gamard alegando uma "audácia de charlatães" (Cuissart, 1832).

Após essa humilhante rejeição, não mais se ouviu falar no Dr. Gamard, que passaria a exercer o mesmerismo discretamente, e assim tivemos aqui no Brasil um autêntico seguidor de Mesmer e Puységur. Nada mais se ouviu falar ou se escreveu sobre Gamard, e também não encontramos nenhuma obra do mesmo, nem mesmo sua tese, exceto o longo e erudito parecer de seu algoz.

Após um hiato de duas décadas, o interesse sobre o magnetismo animal retornou, dessa vez sob a forma de livros publicados no exterior. Um destes foi aqui traduzido em 1853 pelo Dr. Guilherme Henrique Briggs, "Prática Elementar do Magnetismo", do famoso magnetizador francês Barão Du Potet. Entretanto, o interesse nessa forma de tratamento psíquico recrudesceu quando, em 1861, foi fundada no Rio de Janeiro a Sociedade Propaganda do Magnetismo e o Júri Magnético do Rio de Janeiro, ambas dedicadas à pesquisa e tratamento através do magnetismo animal. Estas entidades foram autorizadas a funcionarem desde que as práticas curativas fossem conduzidas exclusivamente por médicos. Neste mesmo ano, o Dr. Joaquim dos Remédios Monteiro apresenta a memória "Magnetismo – História" à Academia Imperial de Medicina.

Nos anos de 1875 e 1876 o médico Gonzaga Filho escreveu uma série de artigos sobre o magnetismo animal na seção de ciências do Diário do Rio de Janeiro, obtendo grande repercussão na Corte. Nessa mesma época (1876), o também médico Melo Moraes publicou o trabalho "Memória Sobre o Fluido Universal ou Éter", onde, entre outras coisas, prefigura a idéia de bioeletrogênese, e Dias da Cruz, catedrático de Patologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Ferreira de Abreu, Gama Lobo, e Gonzaga Filho, pesquisaram o magnetismo animal e o seu potencial terapêutico. Percebe-se, portanto, uma grande atividade e interesse na psicoterapia mesmérica, numa época em que a Europa já abandonara o magnetismo animal e adotava sua versão científica, o hipnotismo de Braid, ainda não conhecido no Brasil.

Entre 1880 e 1887, um grande número de médicos introduziu a terapia pelo magnetismo animal em suas clínicas, entusiasmados pelos relatos dos colegas. Destacam-se entre estes Calvert, médico da Corte do Rio de Janeiro, LucindoFilho, em Vassouras, Moraes Jardim, em Barbacena,  Sá Leite, em Poços de Caldas, Affonso Alves, na Bahia, e outros. Nesse ínterim, em 1884, Nunes Garcia apresentou seu trabalho "Memória Sobre o Magnetismo Animal" na exposição que ele inaugurou na Biblioteca da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

O hipnotismo médico, então declarado como psicoterapia sugestiva, foi finalmente introduzido na prática médica brasileira pelo eminente médico carioca Érico Coelho, que apresentou um caso de cura de beribéri pela hipnoterapia sugestiva à Academia Imperial de Medicina. O caso, diagnosticado como tal, devia ser, na realidade, uma histeria conversiva, o que explicaria o sucesso de Coelho. A importância histórica desse evento foi que, pela primeira, vez a psicoterapia foi apresentada e introduzida na medicina brasileira em bases empíricas, marcando, segundo Francisco Fajardo (1896), o ato inaugural deste método terapêutico. A palavra hipnotismo foi usada pela primeira vez, assim como a palavra psicoterapia, e sua prática foi aprovada pela Academia como ato médico legítimo. A história da introdução da psicoterapia sugestiva ou hipnotismo no Brasil foi recentemente estabelecida por Câmara (2012). 

Gamard e Cuissart

Leopoldo Gamard apresentou sua memória sobre o magnetismo animal à Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro – hoje Academia Nacional de Medicina – em 15 de maio de 1832. Ele não era membro da academia, e para avaliar sua dissertação foi designado o membro titular Augusto Renato Cuissart, que apresentou seu parecer na 18ª sessão da Sociedade, ocorrida em 6 de outubro de 1832, presidida por Francisco Freire Alemão. Nada sabemos sobre o material apresentado por Gamard, mas a íntegra do parecer de Cuissart foi publicado no Semanário da Sociedade (Cuissart, 1832) e também reproduzido por Antonio Rezende de Castro Monteiro (Monteiro, 1980), autor de uma história sobre o hipnotismo no Brasil (Monteiro, 1984).

“A medicina é ciência quimérica e o magnetismo animal e a pedra angular da terapêutica”, foram essas as únicas palavras de Gamard citadas no relatório de Cuissart. Essa frase nos sugere que Gamard estava a par de como o mesmerismo era considerado pelos seus seguidores franceses. De fato, Mesmer proclamara que a medicina era um monopólio em que a doença era um constructo criado para garantir uma profissão que vivia do diagnóstico e tratamento da doença. O magnetismo animal não era apenas um método, mas uma radical oposição à profissão médica e por isso ela foi proclamada pelos revolucionários franceses como a medicina oficial da Revolução. Compreende-se agora porque Mesmer foi tão perseguido pelos médicos e pela casa real, pois sua relação com os conspiradores da Revolução Francesa era vista como temerária. Uma excelente revisão sobre essa ideologia política do magnetismo animal pode ser apreciada na obra de Robert Darnton (1988).

O relatório de Cuissart é uma peça de erudição que mostra o profundo conhecimento que o ilustre membro da Sociedade de Medicina tinha sobre o assunto. Ele faz uma extensa revisão do magnetismo animal, que dividiu em três partes, a primeira relativa aos primórdios, a segunda relativa a Mesmer, que ele considerava um plagiador dos seus predecessores, e a terceira o magnetismo de Puységur e Deleuze. Essa minuciosa revisão tinha por propósito mostrar passo a passo o equivoco do magnetismo animal e os perigos de sua prática para a saúde e para a moral pública. Cuissart repete a conclusão que as comissões francesas chegaram contra Mesmer, bem como a do comissário da polícia francesa, e parece que sua motivação é uma alusão à uma provável defesa de Gamard contra esses malefícios, que desapareceriam se o magnetismo animal fosse uma prática exclusiva dos médicos. A postura de Cuissart ao rejeitar a memória de Gamard parece focalizar esse tema, que pensamos ter sido uma reivindicação deste último em sua apresentação. Enfim, a conclusão final de Cuissart refuta as pretensões de Gamard nessas palavras:

“…o magnetismo animal origina novos perigos a moral publica e para a segurança das famílias. Não se pode negar que o magnetismo não exerça grande influencia moral sobre o sonâmbulo. A vontade acha-se para assim dizer adormecida, e não eh apta para resistir as ordens de quem magnetizou. Não se poderão então conhecer o segredo das famílias, e penetrar nos seus interiores mais sagrados e delicados. D’estas relações tão intimas, d’estas impressões estranhas a par de agradáveis surge uma devoção completa e absoluta para o magnetizador. Facilmente vos imaginaes o que deve acontecer quando a doente eh moça e o magnetizador homem prendado.

 Não se pode objectar que todos esses perigos vão desaparecer uma vez que os médicos pratiquem pessoalmente o magnetismo. Senhores, isto e argumentar do impossível. A ciencia que cada dia estudamos não é ciencia oculta e ninguem nesse recinto se quererá transformar em politiqueiro de praças. Eu concluo vetando na rejeição da memória de M. Gamard.” (Cuissart, 1832)

Percebe-se a preocupação com a excessiva intimidade entre paciente e terapeuta, propícia para uma sedução, e Cuissartteria de esperar mais de  setenta anos para encontrar a explicação em Freud. Apesar de ter sacrificado os desejos de Gamard e tentar eliminar o magnetismo animal em seu nascedouro, Cuissart não conseguiu seu intento. A novidade recalcada retornaria entre os médicos, como já vimos mais acima, e aos poucos se espalhou no novo movimento místico popular que se fortalecia no Brasil: o espiritismo kardecista, cujos transes e passes deleuzianos codificaram as práticas de cura espiritual desta filosofia moral religiosa, hoje com milhões de seguidores em nosso país.

Conclusão

A evolução histórica das idéias e esforços que culminaram com a instituição de medicina psicológica, hoje mais conhecida como psicoterapia, teve sua origem no magnetismo animal e depois na terapia sugestiva (Câmara, 2012), com o nome de hipnotismo, até que a psicanálise despontasse com seu corpo doutrinário. Na contra corrente desse movimento, nasceu o behaviorismo fruto da aplicação do método científico em experiências de laboratório e observações sistemáticas, divergindo a psicoterapia em duas grandes vertentes, a psicanálise idealista e o behaviorismo experimentalista, ambos acolhidos dentro da psiquiatria, até a chegada da terceira corrente: o cognitivismo. O Brasil não foi indiferente nesse fluxo da história, e aqui acompanhamos e debatemos essas correntes a par das novidades que aconteciam na Europa.

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